
"Presumo perfeitamente mentir para proteger meu presidente." Sibeth Ndiaye tem o mérito da franquia quando ela proclamar que desvenda deliberadamente o pacto que rege a relação entre governantes e cidadãos em uma democracia liberal. Este contrato é baseado na publicidade das decisões e na sinceridade de seus atores. É verdade que a condenação da mentira continua implícita na Constituição do Ve República.
Proclama desde o seu artigo 3º que “a soberania nacional pertence ao povo que a exerce através dos seus representantes”; as deliberações do Parlamento que "controla a ação do governo" são públicas e publicadas no Diário Oficial. A noção de publicidade está em toda parte, na Constituição; o da sinceridade, em nenhum lugar, ou quase.
Qual é o sentido de deliberar e decidir em plena luz se a sinceridade não é necessária? Única exceção: as contas das administrações públicas que devem ser "regulares e sinceras". Como se a mentira, a dissimulação, a farsa só pudessem se alojar em realidades quantificadas, que seriam o único horizonte da verdade. Como se a sinceridade fosse um dever do cidadão, na sua declaração fiscal ou no seu testemunho, mas não do governo. A mentira sob juramento constitui crime. O cidadão que depõe perante as comissões parlamentares jura erguendo a mão direita dizer "a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade". Um magistrado deve responder por perjúrio. Mas um presidente, um ministro pode estar no cumprimento do dever sem correr o risco de qualquer penalidade além daquelas emitidas pelo tribunal de mídia. Ouro a opinião pública às vezes é tolerante com mentiras.
A razão de Estado justifica desvios da verdade?
"Les Guignols de l'info", representando Jacques Chirac como um "super-mentiroso" durante a campanha de 2002, não o impediu de ser eleito Presidente da República... Isso significa que a noção de mentira do Estado é reduzida ao do sigilo, há muito justificado por razões de Estado?
Se a mentira política não é o reverso perfeito da verdade (o erro, por exemplo, não diz respeito a este livro), as noções de sinceridade, autenticidade, exatidão, dizem respeito não só à moralidade, à vida privada ou à ciência, mas também à vida política.
Super mentiroso, os Guignols de l'info, 2002.
Na sequência de uma decisão do Conselho Constitucional em 2005, sancionada seis meses depois pelo regulamento da Assembleia Nacional, o debate parlamentar passa a obedecer ao princípio da “clareza e sinceridade”.
Essas noções aparecem com menos frequência na França secular do que em nações mais religiosas, como os Estados Unidos, onde a injunção moral está embutida na cultura política. A mentira sob juramento de Bill Clinton sobre um caso extraconjugal levou o presidente na beira doimpugnação.
A questão de notícias falsas suscita um florescimento de publicações sobre as condições da sua regulamentação no atual regime mediático. A propaganda de guerra, que faz com que as democracias liberais se afastem de seu governo comum, tem interessado os historiadores.
Mas permanece um ponto cego: a vulnerabilidade de nossa vida social e política a uma ampla gama de mentiras estatais que se aproveitam da natureza excessivamente implícita do pacto publicitário sincero na fundação de nossas instituições. Por falta de pensar a verdade em questões políticas, nos acostumamos a envenenar. Nenhum livro de história ou ciência política abordou recentemente a questão da mentira do Estado para pensar sobre sua natureza e documentar seus efeitos. Este livro pretende colmatar esta lacuna para o período mais contemporâneo: o do nosso Ve República.
O que podemos e o que devemos saber em uma democracia?
Filósofos e cientistas políticos se comovem não sem razão com o relativismo da atualidade, que vê florescer a expressão “pós-verdade”. A fronteira entre "opinião" e "verdade factual", por use a expressão de Hannah Arendt, uma distinção endossada por Myriam Revault d'Allonnes, levanta a questão: o que é a verdade, o que podemos saber fora das ciências naturais, em questões sociais e políticas?
Quais são as condições para abordar e compartilhar esse tipo de verdade? Propomos distinguir o que diz respeito à veracidade em questões sociais da verdade matemática, e a exigência de publicidade da sede de transparência.
Não se trata de fundar ingenuamente uma ciência exata da política como sonharam os socialistas utópicos ou Auguste Comte mas concordar com um horizonte de verdade no mundo social, embora admitindo seus limites linguísticos.
Este livro não tem a ingenuidade de caçar mentiras como tantos defeitos morais, equivalentes a erros algébricos – nem acreditamos, aliás, que as ciências exatas produzam uma verdade “pura”, revelando-se o cientificismo como uma perpétua tentação de conhecimento para afirmar o monopólio da verdade. Na verdade, as ciências naturais não são matemáticas. O filósofo e historiador da ciência Thomas Kuhn mostrou que as ciências não são imunes à história.
Uma forma de relatividade da verdade
Admitimos uma forma de relatividade da verdade para as sociedades humanas, sem descurar as zonas cinzentas: Habilidade em comunicação, a ambigüidade que leva em conta a maturidade histórica da audiência (o famoso "eu te entendi" do general de Gaulle), o sigilo e a imprecisão às vezes úteis para a negociação. A exigência de publicidade não significa que a verdade, em matéria política, seria revelada graças a uma fórmula mágica de circulação perfeita de informações inequívocas.
A informatização da sociedade e a facilidade de acesso dos cidadãos aos dados não favorecem mecanicamente o debate público. Percebemos também os limites populistas ou puritanos da demanda por “transparência”.
A demanda por publicidade pode se voltar contra o projeto liberal moderno, que visa submeter a tomada de decisão política à inteligência coletiva. A partilha de informação política, que prejulga uma comunidade racional, deu lugar a uma suspeita sistemática de manipulação por parte das “elites” que pretendem fugir às críticas, decidir em segredo e esconder os verdadeiros decisores.
Essa suspeita beira a conspiração quando leva à convicção de que o poder está sempre em outro lugar que não nas instituições oficiais e que a decisão vem de circuitos ocultos. Além disso, a exigência liberal de publicidade das informações necessárias à deliberação coletiva pode ser alvo equivocado e comprometer uma não menos legítima desejo de sigilo, especialmente na esfera privada.
Pense-se no rastreamento de informações movido por considerações comerciais (tráfico de dados pelo GAFAM para fins de publicidade privada), políticas (o caso Benjamin Griveaux, candidato a prefeito de Paris, por exemplo) ou de segurança (o rastreamento de informações para antecipar qualquer ato de ameaça interna ou externa, do crime ao terrorismo).
Qual fronteira entre publicidade e sigilo?
Qual é o limite legítimo entre publicidade e sigilo em uma democracia liberal? No final do século XVIIIe século, o liberal Benjamin Constant disputado o dever absoluto de veracidade proclamado por Kant. O bem geral da nação, em particular sua defesa contra perigos externos, justifica a mentira? Surge então a razão de Estado, que substitui a racionalidade democrática.
Se Sibeth Ndiaye justificou com desenvoltura a mentira política no interesse de uma pessoa, seria o Presidente da República, deveríamos também negar categoricamente o direito de mentir em nome da razão de Estado?
A questão foi resolvida pela primeira vez, em uma democracia liberal sob o IIIe República. A sociedade francesa, com o caso Dreyfus, pesou o destino de um indivíduo contra a autoridade de um grupo, de uma instituição. Finalmente, não parecia desejável preservar o Exército, apesar de seu papel essencial na sobrevivência nacional, esmagando um inocente. Quando a culpa de Dreyfus acabou sendo um erro judiciário, apareceu à opinião pública pelo que era: uma mentira do Estado...

"Lies of State", publicado em 24 de maio pelas edições New World.
Se os direitos do indivíduo permanecem sagrados, em uma democracia liberal, os da humanidade como um todo também não podem ser desrespeitados: são os interesses da humanidade, até mesmo do planeta, que devem ser defendidos contra a razão, do estado. Essa estranha tensão entre o menor e o universal nos leva a considerar que é preciso descartar qualquer mentira do Estado em benefício do interesse, mesmo que generalizado na escala de uma nação.
Este trabalho, a partir de uma ampla gama de situações históricas recentes, que permite rever todos os tipos de mentiras e seus atores, assume uma posição clara. Ao final do exercício, parece-nos ainda mais do que no início, sob pena de ser considerado ingênuo, que mentir não enfraquece apenas a democracia liberal, mas o próprio Estado. Não só é condenável como ineficaz, e se volta contra a instituição, se não contra a pessoa que a utiliza.
"Mentiras de Estado. Outra História da Quinta República", com Yvonnic Denoël, publicado pela Nouveau Monde em 24 de maio.
Renaud Meltz, Historiador (UHA-Cresat, MSH-P), Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS)
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