Debate: a educação está envolvida nos motins?

Debate é educação envolvida nos motins

A morte de Nahel M., de 17 anos. morto por um policial durante uma verificação de trânsito na terça-feira, 27 de junho de 2023 em Nanterre, levou a tumultos cuja escala e gravidade (incêndios, saques, destruição, ataques a edifícios públicos e privados) mergulharam a França num forte choque. A questão de saber como chegamos lá se torna essencial, pois a busca pela remediação depende do conhecimento das causas.

Dentre eles, muitos atores sociais mencionaram problemas educacionais. O Presidente da República chamou neste sentido “todos os pais à responsabilidade”. ". O Ministro da Justiça emitiu uma circular convidando à instauração de acções judiciais contra os progenitores que "se tenham verificado graves incumprimentos das suas obrigações legais". A organização policial da França chegou a estigmatizar os pais de Nahel, "incapazes de educar o filho".

Uma fratura escolar

A primeira fratura se manifesta em termos de desigualdades, resultados escolares e universitários. É um fato assente, que tem sido objeto de inúmeras pesquisas e análises: a França é um dos países onde a origem social mais pesa no desempenho e nas trajetórias acadêmicas e depois sociais. Isso é evidenciado, por exemplo, pela resultados da pesquisa PISA realizada pela OCDE. O desperdício intolerável do fracasso escolar afeta principalmente crianças de origens desprivilegiadas. E, ao longo dos anos, as desigualdades ligadas à origem social não parecem ter mudado significativamente.

Isso se reflete na geografia escolar, com fenômenos de segregação entre os estabelecimentos. Segundo o público dominante (favorecidos vs. desfavorecidos), abriram-se verdadeiros fossos entre os estabelecimentos de excelência e os estabelecimentos de gueto. E é nos “bairros” que se encontram os estabelecimentos com maior dificuldade. A necessidade de aumentar a diversidade escolar é, portanto, inegável.

De acordo com um nota de pesquisa publicada em abril de 2023, os programas de mistura social testados nos últimos oito anos têm efeitos positivos para todos os estudantes universitários, independentemente de seu status social, em termos de percepção do ambiente social, relacionamento com seus amigos e atitude em relação ao trabalho em grupo ao vivo para alguns (desfavorecidos) ; auto-estima escolar, qualidade das relações e solidariedade com os outros. Mas os efeitos observados são muito menos acadêmicos (aprendizagem) do que "não acadêmicos" (bem-estar e integração).

Como reduzir as desigualdades na escola? (FrançaCultura, 2022).

Deve-se reconhecer que os sucessivos líderes do sistema educacional tentaram fazê-lo, mas com sucesso variável. A luta passou pela criação em 1981 de zonas prioritárias (ZP), que na década de 90 passaram a ser zonas prioritárias de educação (ZEP), cujo mapa foi revisto em 2014 com a criação de redes prioritárias de educação e deve ser revisado novamente em 2023.

A luta também passou por estratégias de bypass de cartas de luta. E, recentemente, através da reforma da atribuição de alunos (plataforma Affelnet), ou da consideração de índice de posição social (IPS).) dos alunos e, sobretudo, dos estabelecimentos. Esta ferramenta, instituída em 2016 pelo sistema nacional de educação, permite determinar um perfil social, avaliado segundo critérios sociais, culturais e económicos. É assim possível atuar na alocação de alunos tendo em conta quer o IPS pessoal quer o IPS médio do estabelecimento de acolhimento.

Porém, na medida em que as desigualdades educacionais são, em grande parte, apenas um reflexo das desigualdades sociais, seria necessário poder combatê-las diretamente. Não podemos perguntar ao sistema educacional o que ele não pode fazer. É ilusório esperar atuar sobre as desigualdades de sucesso sem atuar a montante, e fortemente, sobre as desigualdades sociais.

Uma divisão educacional

Se os motins levantam questões sobre o sistema educacional, sem dúvida colocam em xeque mais fortemente a educação familiar. Em causa estão valores e princípios transmitidos na infância, e aos quais, talvez, alguns jovens desordeiros não tinha acesso.

Como, de fato, entender que adolescentes podem se sentir autorizados a aterrorizar a população; para atacar propriedades e pessoas. Destruir, roubar, queimar, saquear. Ao priorizar o "comum", a tudo o que torna a vida mais fácil, ainda mais agradável, no dia-a-dia, e que permite conviver e crescer: câmaras municipais, centros de bairro, instalações de associações, transportes públicos, bibliotecas, ginásios.

Parece ter havido uma quebra na transmissão de prioridades entre algumas pessoas. Pela (má) sina do povo, é a articulação entre educação familiar e cidadania quem é questionado. Os fatores a serem levados em conta exigiriam longas análises, sociológicas, mas também econômicas e culturais. Por isso nos limitaremos aqui ao ponto de vista da ação educativa e de suas condições de possibilidade.

A participação nos motins poderia testemunhar um certo fracasso educacional. Não se trata de sobrecarregar as mães que, nas famílias monoparentais, se esgotam criando condições para uma vida digna para si e para os seus filhos. Mas não deveríamos notar a importância capital do que Pierre Bourdieu chamou o hábito, "sistema de padrões de percepção, pensamento, apreciação e ação", que todos constroem, em família, desde a primeira infância? E reconhecer que algumas crianças infelizmente sofrem, desse ponto de vista, de uma dupla deficiência?

A primeira resulta de uma falha na concretização da autoridade parental. Pólo cujos princípios todos devem integrar para poder autorregular seu comportamento ("Um homem, é impedido", escreveu Albert Camus), sem se tornar o joguete de suas fantasias e explosões. Uma sociedade "sem pai", ou seja, sem uma pessoa que assuma resolutamente o pólo de autoridade, capaz de proibir, sabiamente (nomeadamente quando está em jogo o respeito pelos outros), só pode afundar-se na loucura destrutiva. Embriagado com o que Hegel chamou de liberdade do vazio. A segunda deficiência é então constituída pela ausência, que dela resulta, de um quadro que grave na pedra aquilo que o dever de respeito pelos outros, sejam quais forem as circunstâncias, nos impõe (ajudar), ou nos proíbe (fazer sofrer, despojar , destruir gratuitamente).

A participação, ou não, nos motins, parece-nos indicar claramente que se estabeleceu uma fractura entre os que beneficiaram de marcos no quadro familiar, e outros que parecem sem horizontes. Entre aqueles cuja educação familiar lhes permitiu integrar a necessidade de “conter-se”; e aqueles que não tiveram tanta sorte. Reduzir essa divisão requer um trabalho imenso. O testemunho de tantas pessoas criadas por mães maravilhosas mostra que não é impossível.

Uma divisão cultural

A terceira fratura é indiscutivelmente a mais difícil de definir com compostura. Toda educação envolve um horizonte cultural. Educamos e treinamos para nos prepararmos para viver em uma comunidade regida por valores comuns e aceitos por todos, caso contrário não há vida comum possível. Esta base de valores corresponde a um imaginário comum, o de uma sociedade onde será possível conviver de forma pacífica, até feliz. No respeito pelas diferenças mas também pelos valores fundadores da sociedade, e que marcam a sua identidade.

No entanto, pode-se perguntar se ainda temos um horizonte cultural comum, que fundasse tanto a possibilidade de uma educação "nacional" quanto de uma pacífica "convivência". É certo que há, sem dúvida, sempre uma pluralidade de horizontes culturais, segundo as filiações ideológicas ou religiosas. Mas o tumultos levantam questões sobre a persistência e a verdadeira força daquilo que constituiu o imaginário republicano desde o fim do Segundo Reinado.

Essa imaginação se cristaliza na representação de uma sociedade regida por valores como "Liberdade, Igualdade e Fraternidade". Tal conjunto de valores possibilita, para além de todas as particularidades, e da diversidade de opiniões, religiões e comportamentos, a vida em comum.

Não poderíamos questionar se este ideal republicano não está em concorrência com um novo imaginário emergente: um imaginário, de certa forma pós-colonial, de redenção ou vingança, exigindo de uma forma tão brutal quanto quase impossível de satisfazer, uma reparação, que começaria com a destruição de todos os símbolos do ex-Estado colonial. No seio, porém, do qual vivemos.

Claro que isso é apenas uma hipótese. Imaginário pós-colonial versus imaginário republicano? Radicalismo destrutivo de quem tem sede de vingança e reparação, contra a imaginação republicana de quem só quer viver em paz? A hipótese é assustadora e, de qualquer forma, exigiria muito trabalho para ser validada. Mas não deveríamos ousar enfrentá-lo? Porque o que está em jogo é a possível contribuição do trabalho educativo para a construção e reconhecimento por todos de um horizonte comum.

Carlos Hadji, Professor Honorário (Ciências da Educação), Universidade Grenoble Alpes (UGA)

Este artigo foi republicado a partir de A Conversação sob licença Creative Commons. Leia oartigo original.

Crédito da imagem: Shhutterstock/PVNF

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