Brasil: que virada para o bolsonarismo?

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Lula vem de vencer por uma cabeça curta o segundo turno da eleição presidencial no Brasil contra o atual presidente Jair Bolsonaro, após uma campanha marcada por distúrbios até o último dia.

Essa campanha extremamente tensa terá confirmado a permanência do bolsonarismo na sociedade brasileira.

Com efeito, apesar do ressurgimento da insegurança alimentar, quase 700 mortes causadas pela pandemia de Covid-000 e a aumento do desmatamento, Jair Bolsonaro e seu governo mantiveram forte popularidade com grande parte da população ao longo de seu mandato. A última pesquisa do Datafolha organizados antes da eleição indicaram que 38% dos brasileiros consideravam o governo “bom” ou “muito bom”, enquanto 22% o consideravam “médio” e 39% “ruim” ou “muito ruim”.

Se o debate permanecer aberto, o pesquisa em andamento mostre isso adesão às ideias bolsonaristas pode ser explicada por vários fatores, sendo o primeiro a estratégia de comunicação do agora ex-presidente. Apesar das recorrentes críticas da mídia tradicional a Bolsonaro e seu governo, o bolsonarismo consegue criar um circuito de informação independente, extenso e permeável, principalmente na internet.

Contra todas as probabilidades

O conteúdo reproduzido por esses meios de divulgação também contribui para a manutenção do bolsonarismo. Apesar de suas diferenças internas, o discurso bolsonarista concebe o líder e seus partidários como soldados na luta contra “o sistema”. Esse “sistema” inclui, entre outros, instituições de ensino superior, instituições judiciárias, ONGs nacionais e internacionais e até as Nações Unidas.

Com isso, qualquer crítica emanada dessas instituições e de seus membros vê sua legitimidade ser questionada, o que ajuda a justificar as dificuldades encontradas pelo governo na implementação de suas políticas.

Além disso, o discurso bolsonarista insiste na necessidade de moralizar a sociedade brasileira. Essa moralização revive a memória de escândalos de corrupção que eclodiu durante os governos do Partido dos Trabalhadores e exalta valores tradicionais - como evidenciado pela slogan bolsonarista muitas vezes repetido, "Deus, país e família". Nesse contexto, o uso de símbolos nacionais e religiosos reforça o efeito moralizador, despertando sentimentos como medo e ódio.

Além disso, é importante destacar o apoio econômico e moral prestado a Bolsonaro por alguns setores, como parte das Igrejas Evangélicas (em especial os pentecostais), do agronegócio, do mundo empresarial, da polícia e do governo.

Uma representação restrita do povo

O enraizamento do bolsonarismo na sociedade brasileira depende em grande parte da construção de uma certa representação do povo. A partir da figura do “bom cidadão”, o povo que Bolsonaro e seu campo pretendem representar se constrói sobretudo em oposição às representações feitas do inimigo comum bolsonarista, encarnado pela esquerda.

Do ponto de vista da luta do bem contra o mal, os outros são aqui os "errantes", sejam eles dentro - todos aqueles que ameaçariam a integridade dos brasileiros e suas famílias - ou fora - nesse sentido, os muitos comparações com países latino-americanos governados por partidos de esquerda servem para advertir contra seu retorno ao poder.

Nesse contexto, Lula aparece como a personificação dessa contra-imagem, unindo o “nós” bolsonarista em torno de uma profunda rejeição. Em particular, atribui-se-lhe o desejo de destruir as famílias brasileiras - tendo como pano de fundo a luta contra a "ideologia de gênero", associada à "sexualização das crianças" - e de perseguir os cristãos, sob o risco de ver seus templos fechados - por citando o exemplo da Nicarágua.

Pânico moral em torno de Lula

As políticas de combate à pobreza implementadas pelo Partido dos Trabalhadores também são castigadas como forma de manipulação eleitoral – ainda que Bolsonaro busque destacando a própria "generosidade" aos beneficiários dessas mesmas políticas. Além disso, Lula é apresentado como o candidato "do sistema", apoiado tanto pela grande mídia quanto pelas instituições encarregadas de regular as eleições - em especial o Supremo Tribunal Eleitoral, representada na pessoa de seu presidente, Ministro Alexandre de Moraes.

Com o pânico moral criado em torno do acampamento Lula, desenvolve-se a ideia de que o Brasil está espiritualmente doente, porque é dominado por forças do mal. Bolsonaro aparece então como o único que pode lutar contra essas forças e “curar” o Brasil livrando-o de um sistema profundamente corrupto.

Esse discurso fundamenta uma forma de aproximação com os eleitores, marcada pela valorização da autenticidade e simplicidade como qualidades intrínsecas do líder e das pessoas que pretende representar. O uso de termos vulgares, a reivindicação do bom senso contra um certo intelectualismo percebido como elitista, ou mesmo seu estilo de vestir traduzem uma representação um tanto caricatural do “cidadão comum”.

O peso do eleitorado popular

De acordo com últimas pesquisas (Datafolha, 28 de outubro de 2022), eleitores com renda familiar menor ou igual a dois salários mínimos brasileiros (cerca de € 460) tendem a votar em Lula (61% Lula, 33% Bolsonaro). Essa lacuna se reproduz na maioria dos estratos onde as classes trabalhadoras são maioria, como entre os eleitores que se declaram negros (60% contra 34%), os menos escolarizados (60% contra 34%) e os que vivem no Nordeste, o mais pobre do Brasil (67% contra 28%). Apesar disso, em um país onde 48% dos eleitores têm renda familiar igual ou inferior a dois salários mínimos, o apoio do eleitorado popular continua sendo fundamental para a manutenção do potencial eleitoral de Bolsonaro.

Este potencial explica-se em parte pelo apoio de que goza com evangélicos. No entanto, o campo evangélico, que em 2018 era fortemente favorável a Bolsonaro (quase 70% dos votos), hoje se tornou um lado contestado, como aponta Esther Solano. Essa professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo observa que alguns fiéis expressam sua insatisfação com a instrumentalização de sua religião para fins políticos e observa a existência do que ela chama de “pentecostalismo oscilante” entre Lula e Bolsonaro. Segundo o pesquisador, alguns fiéis das Igrejas pentecostais lamentam ter apoiado Bolsonaro, seja pela falta de apoio à população durante a pandemia, seja pelo desespero econômico.

Além das questões religiosas, o discurso bolsonarista parece encontrar alguma ressonância na revolta das classes trabalhadoras diante da criminalidade – mais intensa nas periferias das grandes cidades e no campo. Diante dessa revolta, a resposta é uma proposta repressiva, seja da polícia ou dos cidadãos – ficando livres para portar armas de fogo.

Além disso, o discurso bolsonarista destaca a importância da corrupção como chave para explicar todos os problemas. Isso contribui para a construção de uma imagem do Estado como obstáculo ao desenvolvimento individual e coletivo – por isso, nessa ótica, as funções públicas devem ser confiadas ao setor privado, afirmou Paulo Guedes, ministro da Economia de Bolsonaro.

Os efeitos a longo prazo

Tendo em vista o enraizamento bolsonarista na sociedade brasileira, é importante considerar os efeitos de curto e longo prazo que tem produzido nesta jovem democracia. Os incessantes ataques dirigidos aos demais poderes, em especial ao Supremo Tribunal Federal, acentuam a desconfiança das instituições cuja missão é salvaguardar o Estado de Direito. Ancorado na Constituição de 1988, cuja promulgação selou o fim da ditadura militar, esse quadro institucional sinais de corrosão muito antes de Bolsonaro chegar ao poder.

Diante da sucessão de crises e reconfigurações ocorridas na última década, marcada pela demissão de Dilma Rousseff em 2016, além de inúmeros escândalos de corrupção, o descontentamento generalizado está se tornando cada vez mais palpável. O bolsonarismo aparece então como expressão de anti-política, assumindo que todos que se submetem ao sistema são corruptos. Uma construção não desprovida de contradições – dada a longa trajetória do ex-capitão como deputado e, sobretudo, o fato de ele também ser levado a aliar-se a velhas forças políticas para se manter no poder –, mas muito poderoso em uma sociedade assolada por escândalos e um certo discurso moralizante.

Os cenários que estão surgindo para o futuro da democracia brasileira não sugerem um “retorno à normalidade democrática” fácil de operar. O fenômeno observado atualmente caracteriza-se muito mais pela desestruturação de um arcabouço institucional historicamente situado e que já mostrava seus limites.

Mesmo que a vitória de Lula fosse aceita por Bolsonaro e seus apoiadores, seria preciso muito trabalho do novo governo para se readequar aos novos métodos de ação política, diante de uma oposição bolsonarista que, sem dúvida, será feroz e determinada a voltar a poder. o mais rápido possível.

Bruno Ronchi, doutorando em ciência política, Universidade de Rennes 1 et Lucas Camargo Gomes, Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal do Paraná (Brasil)

Este artigo foi republicado a partir de A Conversação sob licença Creative Commons. Leia oartigo original.


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